domingo, março 23, 2008

O PREÇO DA CORAGEM

Uma das grandes apostas para o Oscar 2008, Angelina Jolie, protagonista de O PREÇO DA CORAGEM, acabou frustrando seus fãs e ficando de fora das cinco finalistas. Um absurdo, no mínimo. Ela consegue deixar de lado todos os seus mais costumeiros maneirismos, submergindo num personagem de grande destaque, mas nunca tentando se sobressair à história que está sendo contada. Este é, sem sombra de dúvidas, o melhor trabalho dela no cinema - superior inclusive ao oscarizado GAROTA, INTERROMPIDA, que lhe valeu o prêmio de Coadjuvante em 2000 - e um filme acima de tudo relevante, tanto cultural quanto politicamente falando. Isso sem falar de que este desempenho foi reconhecido por praticamente todas as principais premiações do cinema norte-americano, indicado ao Globo de Ouro, ao Broadcast, ao Independet Spirit, ao Satellite, ao Sindicado dos Atores e segundo os críticos de Londres e Chicago, entre outros. A única - e notória - exceção foi o Oscar. Um pormenor que de forma alguma tira o brilho desta obra de inestimável valor.

Os méritos de O PREÇO DA CORAGEM começam na escolha do diretor: o inglês Michael Winterbottom, reconhecido por obras políticas como O CAMINHO PARA GUANTANAMO (2006), CÓDIGO 46 (2003), NESTE MUNDO (2002) e BEM-VINDOS A SARAJEVO (1997). E ele mostra todo o seu domínio na forma como conduz esta história verídica, baseada no livro escrito pela jornalista francesa Marianne Pearl, que viu seu marido, o norte-americano Daniel Pearl, ser sequestrado e brutalmente assassinado enquanto cobria os conflitos do Paquistão para o Wall Street Journal. Isso aconteceu em janeiro de 2002, e a notícia correu o mundo todo, chegando inclusive aos ouvidos do casal de atores Brad Pitt e Jolie. E foram eles que decidiram que esta tragédia não poderia morrer assim, e que merecia ser levada a um público maior, como forma de anúncio e protesto. Assim, com ela como protagonista e ele como produtor, chegaram até Winterbottom, que tomou para si a missão de transformar aquela série de acontecimentos num enredo forte, chocante, envolvente e, acima de tudo, real. Tão duro quanto a própria vida.

Daniel (interpretado de forma muito convincente por Dan Futterman, visto em filmes como BIRDCAGE - A GAIOLA DAS LOUCAS e indicado ao Oscar pelo roteiro de CAPOTE) foi fazer uma última entrevista antes de terminar seu trabalho no dia 23 de janeiro. Esta é a data oficial do seu desaparecimento. A partir de então o governo do Paquistão, dos Estados Unidos, o Wall Street Journal, a CIA, a polícia local e ONGs internacionais se uniram para tentar uma solução pacífica para o caso. Infelizmente, isto não foi possível. Como este desfecho é mais do que conhecido, o diretor sabiamente não procura fazer disto um mistério. O que nos ganha é o modo sério como este desenrolar de ações é relatado, numa edição inteligente e não cronológica, como peças de um grande quebra-cabeças que vão sendo colocadas ao pouco na nossa frente, para que completamos o trabalho montando-o segundo nossa lógica. Processo muito similar ao que os envolvidos devem ter se confrontado naqueles dez fatídicos dias de suspense e tensão. Assim, O PREÇO DA CORAGEM só cresce, seja se pensarmos nele como obra cultural ou debate sociológico.

O mundo é um lugar repleto de contradições. A forma como Marianne Pearl encarou esta tragédia é mais uma dessas. O tempo todo ela permaneceu honesta ao que seu coração sentia, aos ideais que ela e Daniel sempre acreditaram e a uma visão de mundo justa e equilibrada. Pode parecer loucura algumas de suas decisões, atitudes ou sentimentos. Mas não teriam como ser diferentes. Mais do que uma emocionante história de amor, este é o relato, como diz o título original, de um coração de muito valor, disposto a encarar as durezas da vida de cabeça erguida e ainda seguir procurando por algo que mereça ser parabenizado. Assim como deve ser a impressão de qualquer um de nós após assistir a este filme: com respeito e a consciência de ter recebido uma lição que não deve ser esquecida.

A Mighty Heart, EUA / Reino Unido, 2007
(nota 8,5)


quarta-feira, março 12, 2008

10.000 A.C.

Assisti pela manhã, junto com a imprensa especializada, a principal estréia da semana – ao menos a mais esperada pelo público, com grandes expectativas: 10.000 A.C. é o novo blockbuster do diretor alemão Roland Emmerich, o mesmo de INDEPENDENCE DAY e O DIA DEPOIS DE AMANHÃ. Assim como em todos os seus filmes anteriores (e podemos incluir GODZILLA e STARGATE nesta equação), Emmerich volta a dar mais atenção ao visual de suas tramas do que no enredo propriamente dito. Não é exigido absolutamente nada do espectador ao acompanhar o desenrolar dos acontecimentos – que, muitas vezes, são lentos e aborrecidos, provocando mais tédio do que envolvimento. Por outro lado, quando a máquina de efeitos especiais hollywoodiana entra em ação, o resultado é mais uma vez impressionante. Pena que não haja um bom equilíbrio entre estes dois lados.

Em 10.000 A.C., somos levados até a pré-história e colocados diante da saga de um homem destinado a se tornar o herói do seu povo. O filme começa bem, com bons efeitos – a manada de mamutes é muito bem feita, tecnicamente e contextualmente. Mas logo tudo descamba para ser "mais do mesmo". As referências são as mais óbvias possíveis: JURASSIC PARK, APOCALYPTO, KING KONG e todas as demais produções do gênero são recicladas aqui, sem muita originalidade ou ousadia. O esquema videogame é seguido à risca, e o fato de estarmos numa outra era é apenas um pretexto de marketing – e não um aliado na missão de conquistar a audiência. Assim, logo estamos nos perguntando o porquê do título, para em seguida voltarmos a nos questionar até quando o cinema norte-americano seguirá fazendo sempre os mesmos filmes, com as mesmas histórias.

O ritmo da narrativa é lento, o roteiro é simplista e pouco elaborado, a direção de arte é das mais artificiais possíveis, a maquiagem chega a ser constrangedora, e os atores estão no nível mais baixo da mediocridade. Nada que é mostrado chega a ser minimamente convincente. Em poucas palavras, o filme mostra um garoto tendo que liderar alguns poucos guerreiros numa jornada em busca de outros membros de sua tribo que foram seqüestrados por invasores. No caminho, enfrentam ameaças pré-históricas, como um tigre dente-de-sabre (extremamente falso, a ponto de ser risível, conseguindo ser pior até do que o leão de AS CRÔNICAS DE NÁRNIA) e aves monstruosas (numa seqüência idêntica ao ataque dos velociraptores em O PARQUE DOS DINOSSAUROS). No final o perigo que eles estão enfrentando passa a ser representado por seres que se assumem como divindades, e precisam de mais escravos para a construção das pirâmides. Deu pra sentir o tom de salada geral?

Os protagonistas são Steven Strait (O PACTO), um rapaz esforçado e com físico de super-herói, porém sem o menor carisma ou empatia, Camilla Belle (O MUNDO DE JACK E ROSE), filha de uma modelo brasileira, uma garota tão linda quanto inexpressiva, e Cliff Curtis (ENCANTADORA DE BALEIAS), o mais conhecido do elenco, porém com poucas chances debaixo de uma caracterização horrorosa. Emmerich, que além da direção assina também o roteiro e a produção, não foge do que já está acostumado a fazer. E se a batalha final chega a emocionar por alguns rápidos momentos, a conclusão não poderia ser mais clichê. Se você já assistiu a todos os concorrentes ao Oscar em cartaz e quer passar duas horas no cinema com muita pipoca e refrigerante, sem pensar em mais nada, não desista: tenho certeza que irá encontrar melhores opções do que este 10.000 A.C.!

10.000 b.C., EUA/Nova Zelândia, 2008
(nota 4)

quinta-feira, fevereiro 07, 2008

CONDUTA DE RISCO

Chega a ser impressionante - e extremamente positiva - a atenção recebida por CONDUTA DE RISCO nesta temporada. Afinal, este bem-sucedido thriller sobre os bastidores do mundo dos grandes negócios e da rotina das poderosas firmas de advocacia nada mais é do que isso: um thriller, e só. Não tem pretensões mais ousadas, como ser um drama de época, um conflito de gerações, uma aventura de guerra ou um épico de imagens marcantes. É, sim, uma história interessante e muito bem contada, narrada com precisão e encenada por atores no total domínio de suas habilidades. E por que querer mais do que isso?

Tony Gilroy afirmou ter tido a idéia para CONDUTA DE RISCO enquanto pesquisava para o roteiro de O ADVOGADO DO DIABO (suspense com Al Pacino e Keanu Reeves). E, ainda segundo ele, a diferença entre os filmes está na representação do "bem" e do "mal": se no anterior estes pólos estavam marcados pelos dois protagonistas, neste novo trabalho estas manifestações convivem dentro de um mesmo homem, no caso o que dá o título original: Michael Clayton (George Clooney). Advogado frustrado, ele está "preso ao sistema". O casamento naufragou, a tentativa de negócio próprio foi à falência e não consegue abandonar o vício pelo jogo. Assim, precisa manter o emprego como "limpa-desastres" de um dos principais escritórios de Nova York. Quando ele é chamado para "consertar" as loucuras que um dos clientes da firma está cometendo, finalmente percebe o homem que se tornou e o quão difícil será superar aquela situação.

Raras vezes um filme deste gênero consegue ir além do respeito imóvel da crítica e atingir não só o público (mais de 40 milhões de dólares só nos EUA, apesar do baixo orçamento ter ficado em torno de 25 milhões) como também se fazer presente nas premiações de final de ano. E nisso CONDUTA DE RISCO também se saiu muito bem! Além das sete indicações ao Oscar (Filme, Direção, Ator, Ator Coadjuvante, Atriz Coadjuvante, Roteiro Original e Trilha Sonora), foi indicado também nas principais categorias do Globo de Ouro e do Bafta, além de ter ganho o National Board of Review de Melhor Ator. Clooney, aliás, mostra de vez que mais do que uma celebridade, é também um dos melhores intérpretes da atualidade. Seu desempenho é muito superior ao visto no oscarizado SYRIANA (2005) ou de outros bons trabalhos dele, como SOLARIS (2002) e E AÍ, MEU IRMÃO, CADE VOCÊ? (2000). Ele está cansado, desiludido, perdido, porém não derrotado, e segue usando das ferramentas que ele mesmo ajudou a criar, com uma habilidade e eficiência inatas ao personagem. Um baita ator!

Da mesma forma os coadjuvantes Tom Wilkinson (ENTRE QUATRO PAREDES) e Tilda Swinton (AS CRÔNICAS DE NÁRNIA), ambos indicados ao Oscar, também estão à altura de qualquer maior reconhecimento. Com apenas uma cena cada um merece todo possível elogio: o descontrole dele ou a conversa final dela com Clayton são memoráveis. E isso sem mencionar Gilroy, diretor que estréia com pé direito após alguns anos apenas como roteirista (são dele os três filmes da trilogia BOURNE). Seu controle é total, alternando momentos de tensão e um ritmo sufocante com personagens bem construídos e dotados de profundidade psicológica - nós sentimos os dilemas e as crises enfrentadas por cada um deles. Assustador!

Provavelmente CONDUTA DE RISCO sairá da festa do Oscar sem nenhuma estatueta. Torço para estar errado, no entanto. Este não é o tipo de filme usualmente reconhecido neste ambiente. E não que isso importe. Seus méritos jão estão mais do que evidentes na tela, e é lá onde devem ser apreciados com toda a pompa e circunstância que merecem!

Michael Clayton, EUA, 2007
(nota 9)


domingo, janeiro 20, 2008

EU SOU A LENDA

Will Smith é o maior astro do cinema norte-americano. Ou alguém tem alguma dúvida disso? Se não, quem seria? Tom Cruise (que foi demitido da Paramount e teve seu último filme - LEÕES E CORDEIROS - massacrado pela crítica e ignorado pelo público?)? Brad Pitt (que conseguiu a façanha de NÃO ser indicado ao Oscar por BABEL - apesar do filme ter sido um dos campeões de indicações no ano passado; que teve seu último filme - O ASSASSINATO DE JESSE JAMES PELO COVARDE ROBERT FORD - ignorado pelo público e pela grande crítica, apesar de premiado em Veneza; ou cujo último sucesso de público foi TREZE HOMENS E UM NOVO SEGREDO, e isso porque contava com a companhia de nomes como George Clooney e Matt Damon)? Clooney? Damon? Johnny Depp (que só quer ser visto pelo espectador como Capitão Jack Sparrow em PIRATAS DO CARIBE)? Não, nenhum desses consegue bater Smith, que se dá bem não importa qual seu objetivo, se conquistar a crítica (À PROCURA DA FELICIDADE) ou o público - e o recente EU SOU A LENDA é um ótimo exemplo deste caso!

Desde os anos 70 diferentes estúdios em Hollywood desejavam refilmar o romance de Richard Matheson, que já havia sido levado às telas anteriormente em duas ocasiões. Nomes como Arnold Schwarzenegger, Ridley Scott, Michael Douglas, James Cameron, Guillermo Del Toro e Michael Bay chegaram a estar envolvidos neste projeto, mas nenhum conseguiu ir muito adiante. Só quando o protagonista de filmes como HOMENS DE PRETO e INDEPENDENCE DAY disse "sim" é que finalmente as coisas começaram a andar. E do modo como ele decidiu: o diretor escolhido foi Francis Lawrence (CONSTANTINE) e o roteirista escalado foi o vencedor do Oscar Akiva Goldsman (UMA MENTE BRILHANTE). E tudo isso para contar a história do último homem na Terra. Que, como já adianta o cartaz, não está sozinho!

A trama de EU SOU A LENDA começa com uma notícia fantástica - a descoberta da cura do câncer, feita por uma pesquisadora inglesa (Emma Thompson, em participação especial). O problema começa seis meses depois, quando descobre-se que esta vacina gera efeitos colaterais - um novo vírus, que acaba transformando 99% da população mundial em seres monstruosos sensíveis à luz, quase como vampiros, o que termina ocasionando a morte da grande maioria da humanidade. Os que sobrevivem estão sempre escondidos, esperando o sol se pôr para se alimentar vorazmente de animais ou dos poucos sobreviventes biologicamente imunes e, portanto, não infectados. Will é uma dessas pessoas, que por acaso vem a ser também um cientista, desde então empenhado em encontrar uma cura para este mal terrível.

Durante dois terços do filme Will Smith está sozinho em cena, acompanhado apenas do pastor alemão Sam. E, por incrível que pareça, ele segura muito bem a atenção da platéia, nos deixando ligados em cada movimento seu, desde a nova rotina em casa até suas saídas pela cidade devastada. O perigo está em cada esquina, em cada viela escura, em cada prédio abandonado. E somos sabiamente relembrados disso a todo instante. O que não quer dizer que não sejamos pegos de surpresa a cada novo susto. No restante final da história dois outros sobreviventes imunes aparecem - entre eles, a atriz brasileira Alice Braga, sobrinha de Sônia Braga e presente em filmes como CIDADE DE DEUS e CIDADE BAIXA. E a menina se sai muito bem, assumindo sua brasilidade, porém sem estereótipos constrangedores ou um sotaque carregado.

Não deixa de ser curioso um filme em que a grande vilã acaba sendo Emma Thompson e que o mundo é salvo graças a ajuda de uma brasileira. E, apesar desta bizarra conjectura, EU SOU A LENDA é diversão das boas, cinema-pipoca de qualidade, cheio de bons efeitos especiais, atores competentes no domínio de suas habilidades e uma trama que se não surpreende, ao menos não aborrece pela obviedade. Uma ótima pedida para esse período de férias. Basta apenas não exigir além da conta. Afinal, Smith sempre cumpre o que promete!

I am Legend, EUA, 2007
(nota 7)



domingo, janeiro 06, 2008

IMPÉRIO DOS SONHOS

Um amigo me disse ter se sentido ofendido após as três horas de duração de IMPÉRIO DOS SONHOS, nova loucura assinada por David Lynch. Já outro afirmou ter baixado o filme pela internet logo que o encontrou disponível, e que já o tinha assistido no mínimo umas cinco vezes antes da estréia nos cinemas brasileiros (onde foi conferir novamente, apenas pelo "prazer da tela grande"). Eu, por outro lado, não sei muito o que dizer. Afinal, como criticar - para o bem ou para o mal - algo que você simplesmente não entendeu?

E acredito também que a idéia seja exatamente esta: provocar muito mais dúvidas do que esclarecimentos. Para se ter uma idéia, durante uma entrevista a um programa de televisão, Lynch e Laura Dern, a protagonista, não conseguiram chegar a um acordo a respeito de quantos papéis ela própria interpreta no filme, se três ou quatro. Bem, se nem eles, que idealizaram o longa, conseguem se entender, o que sobra para nós, meros espectadores?

IMPÉRIO DOS SONHOS começa com uma garota assistindo a um programa na televisão. Parece ser um sitcom - um único cenário, claquetes com risadas da platéia - em que os personagens são seres humanos com cabeças de coelhos. Logo em seguida estamos na majestosa residência de uma atriz aparentemente famosa, que está em vias de voltar ao estrelato por conseguir um papel bastante disputado. É o remake de um filme que não chegou a ficar pronto, sobre uma família polonesa assassinada. Os protagonistas do filme original morreram durante a produção, e tem-se este temor que o mesmo aconteça durante as novas filmagens. Um grupo de prostitutas também pontua algumas situações, assim como uma mulher que está contratando um detetive particular. Ah, e há também uma família que recebe uma trupe de viajantes da Europa oriental para um churrasco no jardim (!).

Qual a relação entre todas estas histórias? Aparentemente, nenhuma. Por outro lado, talvez todas estas tramas revelem facetas de uma mesma mulher. A atriz decadente que revive o papel de uma estrela de outrora que está trazendo à vida uma sofrida dona de casa polonesa que suspeitava que o marido a estava traindo e que por isso ansiava por ter uma vida familiar tranquila e perfeita e que, pela ausência dessa realidade, imagina-se prostituindo-se em troca de um pouco de atenção e, pela inevitabilidade disto, termina de forma trágica. Ou então seria a vizinha que aparece no começo do filme a verdadeira protagonista, a imigrante da Polônia responsável por todas aquelas tragédias e que manifesta-se naquele momento para alertá-la dos perigos que estaria prestes a correr? Muitas interpretações mais certamente são possiveis, e quem se dedicar a procurar não terá dificuldades em encontrar argumentos e elementos que colaborem nestas outras posições. IMPÉRIO DOS SONHOS é uma obra literalmente aberta, e caberá ao espectador e ao seu universo de referências montar - ou não - este quebra-cabeças.

Premiado no National Board of Review como "Melhor Filme Experimental" do ano (prêmio até então inédito) e merecedor de um prêmio especial no Festival de Veneza "pela inovação digital proposta em sua concepção", IMPÉRIO DOS SONHOS, ao contrário de outros filmes de David Lynch, praticamente não possui dentro de si chaves que possibilitem um melhor entendimento. Hermético e bizarro, se comporta como os sonhos mais confusos e problemáticos que temos, indo do pesadelo ao descanso total em questão de instantes, para depois retomar condições até então esquecidas. Dern, a grande estrela da obra, se entrega de corpo e alma à visão aparentemente desconexa do diretor, aceitando todas as propostas de forma integral. Cada mudança dela é tão intensa quanto discreta, mostrando que é no interior de cada um onde se escondem os verdadeiros medos e desejos. E quem quiser embarcar nesta viagem não deve temer os bocejos, a frustração e a incompreensão, assim como deve estar pronto para os pequenos prazeres dispostos aleatoriamente durante o desenrolar da ação. Ganha quem aceitar mais - e procurar entender menos!

Inland Empire, EUA, 2006
(nota 5)







quinta-feira, janeiro 03, 2008

A BÚSSOLA DE OURO

Em A BÚSSOLA DE OURO, assim como em outros casos recentes (HARRY POTTER E A ORDEM DA FÊNIX, NOTAS SOBRE UM ESCÂNDALO, TROPA DE ELITE), tive a felicidade de ler primeiro o livro original antes de ver a adaptação cinematográfica. E, ao contrário do que geralmente acontece, desta ver o filme se saiu melhor do que a fonte literária - por mais incrível que isso possa parecer! Sim, porque a obra de Philip Pullman, por mais elogiada ("arrebatador e extraordinário", Sunday Times; "grandioso, força e beleza cena após cena", New York Times; "um daqueles livros que dão dor de fechar", Scotsman; e o mais exagerado, "raramente, se é que já aconteceu, foi apresentado aos leitores uma oferenda tão rica em maravilhas", Independent) e premiada (ganhador das medalhas Carnegie e Guardian de Livro do Ano) que seja, tem aspectos extremamente duros e de difícil digestão, que ao serem levados para a tela grande foram atenuados de uma forma inteligente e perspicaz. Não que tenha mudado muita coisa - a trama em si continua exageradamente trágica - mas ao menos aparenta estar mais adequada ao público ao qual se dirige.

E que espectador seria esse, o mais indicado para assistir - e ler - A BÚSSOLA DE OURO? Bem, segundo os produtores, à princípio seriam os mesmos que ficaram maravilhados pela saga O SENHOR DOS ANÉIS - e, em menor escala, por genéricos como AS CRÔNICAS DE NÁRNIA, ERAGON ou STARDUST. Porém o enredo aqui abordado trata muito mais de política, religião e filosofia do que de aventura e emoção propriamente dita, dispostos durante o desenrolar da ação de modo irregular. Não será surpresa alguma se muitos enfrentarem as quase duas horas de projeção alternando bocejos com pulos na cadeira!

O diretor Chris Weitz não parece ser o homem mais indicado para coordenar um filme deste gênero. Responsável pelos simpáticos AMERICAN PIE e UM GRANDE GAROTO, ele deixa bastante visível sua falta de jeito diante cenários tão grandiosos, estrelas poderosas e idéias dotadas de ambição e magnitude. Os efeitos especiais, por outro lado, não chegam necessariamente a surpreender, mantendo ao menos o bom nível de longas mais antigos que exploraram opções semelhantes - animais falantes, grandes batalhas e explosões catastróficas. Por fim temos bons atores em papéis minúsculos - Nicole Kidman, excelente, deve aparecer, se tanto, meia hora, enquanto que Daniel Craig e Eva Green não possuem mais do que 10 minutos cada um em cena. A - boa - surpresa é a garota Dakota Blue Richards, que estréia no cinema já como protagonista, cumprindo a contento suas obrigações e ainda acrescentando uma graça e um carisma dignos de quem promete muito para o futuro.

E qual é a história, enfim, de A BÚSSOLA DE OURO? Num mundo dominado pelo "Magistério", uma entidade religiosa controladora e opressiva, poucos ambientes estão a salvo deste poder, e um deles são as universidades. E é numa das mais importantes que a menina Lyra foi entregue para ser criada. Sem saber quem são seus pais, certo dia, pouco antes de entrar na adolescência, ela é entregue para a misteriosa Sra. Coulter (Kidman), uma das mais influentes personalidades à serviço do Magistério. Ao descobrir que sua nova tutora estaria por trás do desaparecimento de dezenas de crianças, se rebela e foge. Neste mundo todos os humanos - crianças e adultos - têm sempre ao seu lado um "daemon", animais falantes que seriam, na prática, a representação material da alma. Um nunca pode ser separado do outro - um eventual afastamento teria proporções trágicas para ambos. E a ligação entre eles seria proporcionada pela existência do Pó, substância mágica que, acredita-se, seria responsável pelo "pecado original". O que o Magistério quer é descobrir um meio de acabar com o Pó - e, para isso, experiências devem ser feitas, geralmente envolvendo crianças, daemons e o fim da ligação entre eles. Com a ajuda de ciganos, de um cowboy voador, das bruxas e de um urso guerreiro, Lyra, dotada de uma bússola mágica que sempre lhe oferece a verdade independente da pergunta feita, irá ao Norte gelado para tentar por fim a esta barbaridade - e, assim, salvar seu melhor amigo!

A BÚSSOLA DE OURO é cinemão fantástico, feito para ser assistido no cinema com muita pipoca e refrigerante. Mas também trata de temas como autoritarismo, selvageria, traições, soberba e vingança. Talvez tenha sido por causa dessa combinação pouco usual que o filme não tenha se saído tão bem quanto se esperava nas bilheterias norte-americanas - pouco mais de US$ 50 milhões de dólares em um mês em cartaz, para um orçamento de US$ 180 milhões! Nos mercados internacionais os resultados foram um pouco melhores, ultrapassando o dobro do arrecadado na terra do Tio Sam. Prejuízo provavelmente não irá gerar, mas é pouco provável que continue se apostando neste projeto para a transposição dos dois livros restantes da trilogia. Ou seja, quem permanecer no cinema terá visto um filme sem final, carente de uma conclusão que ficará ausente devido ao conservadorismo da audiência e da falta de visão de quem toma as decisões, incapazes de perceber que, em alguns casos, menos poderia gerar muito mais.

The Golden Compass, EUA/Reino Unido, 2007
(nota 7)




P.S. EU TE AMO

Existem atrizes e atrizes, boas e más. Entre as boas, há aquelas melhores, que sabem fazer praticamente tudo (como Meryl Streep, para fazer uma escolha óbvia) e outras nem tanto, que são boas somente num tipo de personagem. Neste caso está Hilary Swank. Duas vezes vencedora do Oscar de Melhor Atriz, em ambos trabalhos premiados ela interpretava personagens duros, masculinizados (a garota que queria ser rapaz em MENINOS NÃO CHORAM e a lutadora de boxe de MENINA DE OURO). Portanto, quem a conhece minimamente sabe que, com este perfil, ela, definitivamente, nada tem a ver com o universo das comédias românticas. Portanto, partindo deste consenso, não é difícil imaginar o tamanho do desastre que é este P.S. EU TE AMO.

Swank está numa posição bastante desconfortável em Hollywood. Ela foi tão rapidamente - em menos de 10 anos - da posição de total desconhecida para a condição de uma das atrizes mais premiadas da América. Assim, ela simplesmente não pode se deixar envolver em qualquer projeto, da mesma forma que não conseguiu construir para si uma "persona" no mundo do cinema, uma carreira de "tipos" com os quais ela, assim como o público e a indústria, se identificasse além dos dois mais notórios. Pequenas participações de luxo em semifracassos como O DOM DA PREMONIÇÃO (2000) e DÁLIA NEGRA (2006) pouco contribuíram, mas ainda assim causaram menos prejuízo do que as bombas que contavam com ela em personagens heróicos (O NÚCLEO, 2003) ou misteriosos (A COLHEITA DO MAL, 2007). De destaque, mesmo, somente a coadjuvante de INSÔNIA (2002), ao lado de Al Pacino e Robin Williams, e um pequeno filme inspirado numa história real e lançado diretamente em dvd no Brasil: ESCRITORES DA LIBERDADE (2007).

Ao observarmos esta trajetória, talvez se entenda um pouco melhor o porquê de P.S. EU TE AMO. É a primeira vez que interpreta uma heroína romântica (terreno que fez a popularidade e a fortuna de estrelas como Julia Roberts, Sandra Bullock e Meg Ryan, por exemplo). E, por outro lado, está retribuindo um favor ao diretor Richard LaGravenese, responsável por este e pelo mais bem sucedido ESCRITORES. Se esse filme ele fez para ela - era um projeto pessoal dela - este mais recente atende a uma vontade de dele (e dela também, vamos combinar) de se tornar viável comercialmente. O problema é que, mesmo tendo por trás uma estratégia tão planejada, o resultado é frustrante, impossibilitando qualquer maior ambição.

P.S. EU TE AMO já começa errado: com o casal de protagonistas, Swank e Gerard Butler (300), discutindo. Percebe-se que os dois estão juntos há mais de uma década, e estes últimos anos não foram tão bons com eles - onde foram parar os sonhos da juventude? Após corte brusco, estamos no enterro dele, e ela acredita não ter mais razão para viver. Mas um plano desenvolvido antes da morte irá ajudá-la: no dia seguinte passam a chegar pelo correio cartas dele, enviadas não sabe-se por quem, mas que lhe repassam recados de como ele via a vida, e mais importante, de como ela deve reaprender a viver. Todas estas mensagens, obviamente, assinadas com um "p.s.: eu te amo".

Se Swank e Butler não possuem a menor química juntos, os coadjuvantes se saem ainda pior. Lisa Kudrow (FRIENDS) e Gina Gershon (A OUTRA FACE) não convencem em nenhum instante como "melhores amigas": cada uma quer aparecer mais do que a outra com tiradas cômicas superficiais, dificultando a identificação com o espectador. Harry Connick Jr. (WILL AND GRACE) e Jeffrey Morgan (GREY'S ANATOMY), ambos como prováveis candidatos ao coração da protagonista, estão desajeitados e pouco interessantes em suas intenções. Já a também oscarizada Kathy Bates parece deixar claro no mal humor de sua personagem sua insatisfação com estes papéis medíocres de "mãe de alguém" (como foi de Matthew MacConaughey em ARMAÇÕES DO AMOR). E se não há diversão do lado de lá da tela, imagina entre quem está estático sentado diante de todo este constrangimento!

P.S. I Love You, EUA, 2007
(nota 4,5)


quarta-feira, janeiro 02, 2008

O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA

Mike Newell, diretor de O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA, afirmou, numa das entrevistas de lançamento do filme, que estaria com mais medo da reação dos fãs do romance de Gabriel García Márquez do que dos adoradores de Harry Potter. Pois esse receio tem fundamento, uma vez que a versão cinematográfica de O AMOR... é infinitamente inferior ao longa anterior dele, HARRY POTTER E O CÁLICE DE FOGO (quarta aventura do menino bruxo criado por J.K.Rowling). Não só a direção é canhestra neste novo trabalho, como toda a composição envolvida nesta adaptação tem percalços, a despeito dos inúmeros talentos envolvidos no processo.

A história é bastante conhecida: rapaz pobre se apaixona por menina rica e decide esperar por ela o quanto for preciso. O pai dela, ao saber do romance, a manda para o interior, para a casa de familiares. Anos depois, quando volta, afirma não sentir mais nada por ele, e acaba casando com um médico famoso. Ele não se conforma com a recusa, e em cada mulher que se envolve procura um pouco dela. Mais de 50 anos depois, quando ela fica viúva, ele reaparece, pedindo-a em casamento. Apesar da proposta ser recusada com veêmencia, aos poucos ela vai cedendo, até que o "amor eterno" dele finalmente se concretize.

O inglês Mike Newell sabe contar histórias de amor - vide o imenso sucesso de seu filme mais elogiado, QUATRO CASAMENTOS E UM FUNERAL. O problema aqui é a vontade de se intrometer num mundo que lhe é completamente estranho - e o fato do roteiro ter sido escrito pelo sul-africano Ronald Harwood (vencedor do Oscar por O PIANISTA) não colabora muito. O que para os latinos soa ardente e sexy, na visão européia pode se transformar em caricaturesco e irônico. E é o que muitas vezes acontece, desde pequenos detalhes até mesmo na composições de personagens fundamentais. E, assim como visto em filmes como A CASA DOS ESPÍRITOS, esse "olhar estrangeiro" não será competente o suficiente para captar todas as nuances propostas pela obra original.

O elenco internacional é um caso à parte. O espanhol Javier Bardem (MAR ABERTO) é uma escolha mais do que acertada como o protagonista Juvenal, e ele por si só já faz valer o ingresso. Cada gesto, cada manifestação de desejo, amor ou frustração ganha uma magnitude inesperada quando envolta pelo olhar deste ator fenomenal. Por outro lado, a italiana Giovanna Mezzogiorno não consegue ficar à altura dos bons trabalhos feito em seu país natal, como os memoráveis O ÚLTIMO BEIJO ou A JANELA DA FRENTE. Submissa, acaba sucumbindo tal qual sua Fermina, passando pela tela sem se fazer notar. A colombiana indicada ao Oscar Catalina Sandino Moreno (MARIA CHEIA DE GRAÇA) pouco faz com o tempo escasso que tem em cena, assim como os americanos Liev Schreiber (SOB O DOMÍNIO DO MAL) ou Benjamin Bratt (MISS SIMPATIA). Já o também colombiano John Leguizamo (MOULIN ROUGE) é um desastre: tudo bem que o pai da moça precisa deixar claro sua contrariedade quanto à atração da filha pelo pobre rapaz, mas seus exageros o fazem se assemelhar mais a um sanguinário assassino do que a um homem de posses tentando defender sua honra. Por fim, felizmente, uma boa notícia: a estréia da nossa Fernanda Montenegro num projeto hollywoodiano está acima de qualquer deslize da produção. Mesmo num papel secundário, ela injeta uma vitalidade singular e fundamental na história. Os momentos de preocupação com o filho devoto a um amor improvável até a loucura final se alternam com suavidade e total controle, mostrando que não é o tamanho do personagem que faz diferença quando há experiência e sabedoria em jogo.

Fernandona, aliás, não é a única brasileira na equipe de O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA: o diretor de fotografia, responsável por cenas belíssimas, é Affonso Beato (que já trabalhou com Cacá Diegues e Pedro Almodóvar), enquanto que a trilha sonora ficou à cargo de Antonio Pinto (de CIDADE DE DEUS, COLATERAL e O SENHOR DA GUERRA, entre tantos outros). O trabalho deste, em conjunto com a pop star Shakira, aliás, responde pela única indicação do filme ao Globo de Ouro: Melhor Canção, para "Despedida". Um reconhecimento justo, porém muito aquém da expectativa levantada quando sua realização teve início. Estivesse passado pelas mãos de cineastas mais familiarizados com este universo, como Walter Salles ou Alfonso Cuarón, certamente o resultado teria sido muito diferente. E o fato de ser todo falado em inglês não colabora em absolutamente em nada: nem no faturamento internacional, uma vez que arrecadou menos de US$ 5 milhões nos Estados Unidos, apesar de ter custado quase 10 vezes este valor! Por fim é mais um produto multicolorido feito para turista se entreter por alguns trocados e por poucos minutos - e, dessa forma, esquecer logo em seguida, assim como todos os envolvidos em ambos os lados da tela!

Love in the Time of Cholera, EUA, 2007
(nota 6)